em mim todos os sonhos do mundo

04 jan

Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada, pensou. Mas ele sabia que à parte isso, tinha em si todos os sonhos do mundo.

Por isso ele resolveu pegar aquela camiseta branca velha e pintar a frase de Fernando Pessoa. Na frente e atrás. E quando terminou, deu um beijo na mãe, tomou um copo d’água e se despediu, dizendo que ia se encontrar com uns amigos.

A mãe, que na noite passada tinha tido um pesadelo em que via um corpo boiando inerte em uma piscina, achou estranho, sentiu um negócio esquisito no peito, mas se limitou a dizer “Se cuide meu filho!”

Ia encontrar com os amigos era para protestar. Protestar contra o governo. Contra as arbitrariedades. Uma palavra tão cabulosa que deve ter sido inventada em tempos difíceis. Basta repetir: arbitrariedades. Coisa louca, nunca é uma só. São arbitrariedades.

Quando chegou no ponto de encontro já estava rolando confronto. Precisou pouco para isso. A polícia vai esperando a deixa. E alguns sempre vão pro sacrifício. Não é nada difícil isso acontecer.

Passou pela galera ansiosa ansioso, se infiltrou no meio da turma, chegou na linha de frente. Parou. Olhou. Acomodou o corpo. Tentando manter a calma, ele estava de frente pros homi. É treta! Impossível a perna não tremer e o suor não brotejar na testa. Começou a contar: um, dois, três, seis, oito, treze, dezenove policiais, quantos são, peraí, trinta e três, quarenta e quatro… Vem chegando mais, o quê que está pegando mesmo?

Qual é meu nome, Hermano ou Diego? A mente turva, a cabeça a milhão, ele na linha de frente do confronto. A essa hora a mãe, que assistia TV, já estava recebendo flashs do protesto dos estudantes contra o fechamento de escolas. “A situação está tensa”, anunciava a repórter e as câmeras mostravam os estudantes sentados em carteiras, no meio da rua dos carros, impávidos, silenciosos, resistentes como Gandhi. E do outro lado, num mar de luzes piscando das viaturas, um batalhão inteiro de policiais, com cavalaria, cães, tropa de choque, blindados, motos, um arsenal pesado.

No fundo, todo mundo rangendo dentes. Estavam na frente de uma delegacia. O território é deles, do “ladonegrodaforça”, rolava a hashtag. Tem que tomar cuidado, evitar o confronto.

Só que o inesperado acontece. Um cachorro escapou da mão de um dos guardas e saiu correndo como um foguete. Voou no primeiro que viu. No pescoço. Como um tiro seco.

Os estudantes gritaram. Os policiais foram para cima. A mãe, que já tinha visto tudo pela TV, corria para lá. Correu e chegou na hora.

Que hora é essa, Hermano ou Diego? De despedir, mãe! Em pedaços os dois, sem ninguém poder fazer nada.

Filho. Um filho. Só quem tem filho sabe o que é mexer com um filho seu. “Cadê meu filho? Me dêem meu filho de volta! Vocês mataram meu filho!”, ela gritava, ajoelhada aos pés dele.

O que ela disse quase ninguém ouviu. Outras mães iriam se juntar a ela logo depois. Em meio a muita violência. Muita mesmo.

Eram só estudantes, Es-tu-dan-tes! Jovens! Futuro do Brasil!! Todos os sonhos do mundo e alguns mais. Protestando contra o fechamento das escolas deles, nada mais justo!!!

Por quê que matam as pessoas?

Quem é que autoriza tudo isso?

 (Um conto de Wagner Merije)

 

 

 

Tenho em mim todos os sonhos do mundo

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